sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Eugênio Barba e Julia Varley, do Odin Teatret, em artigo para O POVO.


Eugênio Barba, os segredos do teatro e nós.


Seria difícil tarefa a de sintetizar a relevância de Eugênio Barba para as artes cênicas, hoje. Poucos conseguiram atingir uma constância e uma coerência estética com tantas ressonâncias e vivacidade. Por isso mesmo, está ao lado de Stanislavski, Gordon Craig, Appia, Meierhold, Artaud, Brecht, Beckett, Grotowski, Peter Brook, Bob Wilson, dentre tantos outros que pesquisaram e abriram, mundialmente, as possibilidades da cena, a partir de diferentes abordagens para a criação que se dá a ver mediada pelo corpo do ator. Esses são artistas tão expressivos quanto Duchamp ou Picasso, das vanguardas das artes visuais. Isso porque as categorias teatrais canonizadas desde a época clássica com a Poética de Aristóteles (espaço, tempo, ação) foram por eles redefinidas e redesenhadas, em consonância com as iniciativas simbolistas, em busca da desierarquização entre texto e encenação, liberando o palco como espaço de reinvenção de um mundo, sem amarras ao realismo ou a qualquer estilo de representação consolidado, deslocando o foco para a atuação mais aproximada à atividade experimental e técnica do que às emanações de uma forte personalidade artística.
Barba se situa numa leva de encenadores que se extasiaram com as formas e fluxos de movimentos dos teatros orientais como a ópera chinesa, o kabuki e o nô japoneses ou o kathakali indiano, em que a ritualidade e a sintaxe próprias se faziam por meio do entrelaçamento entre gesto, música e dança, em narrativas que prescidiam da palavra, jogando por vezes com sonoridades e coreografias enigmáticas ao olhar estrangeiro, contando o que entenderíamos como narrativas fantásticas ou mi(s)ticas. Não por acaso, seu teatro se auto-denomina antropológico, pois é na transculturalidade que retira seus materiais de encenação.
Em sua primeira palestra no Theatro José de Alencar, apresentou-nos os rudimentos de sua prática, a partir de um silêncio acústico inicial, voltando-se para os jogos de movimento e caminhadas na ponta dos pés, dinâmicas com bastão e sonoridades da atriz Julia Varley. Estavam ali representados alguns dos principais temas de A arte secreta do ator – Dicionário de Antropologia Teatral, um inventário de técnicas para o estabelecimento da presença cênica, tais como: dilatação, energia, equilíbrio, oposições, ritmo, pré-expressividade e treinamento.
Ainda que pondo em perspectiva a experiência de teorizar, à qual ele próprio se dedicou sistematicamente ao longo de mais de trinta anos, Barba deu ênfase ao treinamento criativo cotidiano, aquele que é feito por cada ator, personalizado, no qual as sequências de jogo acrobático e de aquecimento estão interligadas, fazendo jus ao nome de “dança pessoal”, técnica que tem sido difundida no Brasil pelo Lume (grupo vinculado à Unicamp), há aproximadamente vinte anos. Atuar e dirigir são para Barba extensões dessa atividade de treino sobre o bios cênico, que ele bem apreendeu em Grotowski nos anos em que foi seu aluno e assistente, para atingir a percepção do espectador num nível sinestésico, e não apenas acústico ou visual.
Assim ocorreu na demonstração de um vídeo de 1973, “na sala branca” do Odin Teatret, espaço em que mantém sua Escola Internacional de Antropologia Teatral (ISTA), na Dinamarca. Numa das cenas, dois atores chutavam-se levemente na altura do esterno, para não atingir o estômago um do outro, num certo grau de dificuldade que requisita alongamento, agilidade e precisão muscular de seus participantes. Nesse tipo de dinâmica, o diretor não intervem muito, pois desenha-se, como na capoeira, uma dramaturgia do estar em jogo que é toda fundada pelo ator. Assim também vimos acontecer, num dado momento da palestra, quando ele se dirigiu a Julia com apenas uma sugestão para seu movimento: buscar a “espinha-dorsal”, ou eixo, da cadeira que ela estava tentando manipular.
Em “Eco do silêncio”, demonstração/espetáculo da atriz, outro exemplo de partilha com o público, mas na ausência da figura do diretor. Sozinha, Julia demonstrou e ilustrou suas ações codificadas em trechos de peças, valendo-se de uma memória musical e psico-física que ia sendo mapeada ou desnudada, revelada em seus artifícios, sem grandes truques, com pleno domínio e dentro de uma estrutura espetacular singela: relação direta com a platéia, uma cadeira, iluminação simples, roupas cotidianas e um espaço íntimo de proximidade. Performance e dança estavam ali evocadas no despojamento dos movimentos e sons, da presença neutralizada que passava a momentos fortemente expressivos, com quebras constantes em virtude da explicação daquilo que estava sendo feito.
Filtrando as referências essenciais e fazendo da imersão de cada ator um tema de encenação, Barba pôde não apenas pagar tributo, mas dar continuidade à primeira geração de reformadores do teatro ocidental, que ele nomeou de “cavaleiros do apocalipse”, sobretudo Stanislavski, Craig, Appia e Meierhold. Em meio ao que considera ser a diluição da arte do ator por influência das representações midiáticas, Barba provoca-nos a instaurar e reinaugurar uma prática de pesquisa sobre si e sobre as próprias tradições do teatro, na configuração de uma cena atemporal, como a que cria e descria Julia Varley em suas demonstrações performativas.
Para nós, na efervescência deste encontro em Fortaleza, é possível aprender (pela primeira ou segunda vez) da postura de Barba sua persistência de inventariar as formas tradicionais, descobrir-lhes os princípios estruturais e jogar com eles. Voltar o olhar para as etapas mais processuais de criação, que têm a ver com as políticas dos corpos, seus espaços internos e externos. Interseções, à beira do desconhecido. Abrindo a cena à fertilidade das interações entre informações culturais, ainda que distantes em tempo e espaço, mas artisticamente afins ao momento presente.